O Estado de São Paulo

Sérgio Lopes Guimarães de Carvalho Bessa*

10 de setembro de 2019

 

No último dia 27, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal concedeu ordem de habeas corpus impetrado pela defesa do ex-presidente da Petrobras, Aldemir Bendine, para anular sua condenação pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro no âmbito da Operação Lava-Jato, porque o Juízo de primeiro grau havia determinado a apresentação de seus memoriais escritos – última manifestação da defesa antes da sentença – e dos corréus colaboradores em prazo simultâneo (Ag. Reg. no HC no 157.627/SP)[1].

Embora o acórdão ainda não tenha sido publicado, é possível afirmar que a decisão foi tecnicamente acertada.

Críticos à decisão irão argumentar que não há previsão na lei acerca da ordem de apresentação de memoriais por réus delatores e delatados.

De fato não há. A Lei no 12.850/13, que instrumentalizou o instituto da colaboração premiada, e o Código de Processo Penal não discorrem expressamente sobre o tema.

É certo, porém, que a leitura contextualizada, sistêmica e harmônica de ambas as normas em conformidade com os preceitos e garantias previstos na Constituição Federal não deixa dúvida de que a solução adotada pela Corte é correta, pois “o direito de a defesa falar por último decorre, aliás, do próprio sistema normativo como se vê, sem esforço, a diversos preceitos do Código de Processo Penal” (STF, HC no 87.926/SP, Rel. Min. Cezar Peluso, DJe 25.04.08).

Cabem, ademais, duas outras considerações preliminares: a Lei no 12.850/13 é posterior ao Código de Processo Penal, vigente a partir de 1942, de forma que não haveria como essa específica situação ter sido nele prevista. Em relação à lei mais recente, o legislador silenciou, razão pela qual cabe aos juízes e tribunais a função de aplicar o direito de acordo com “a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito” quando a lei for omissa (art. 4o da Lei n. 4.657/42 – Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro)[2].

A Constituição Federal assegura expressamente aos acusados em processos judiciais e administrativos as garantias da ampla defesa e do contraditório, bem como o devido processo legal (art. 5o, LIV e LV).

Conforme valiosa lição de Sergio La China, “o princípio do contraditório se articula, nas suas manifestações técnicas, em dois aspectos ou tempos essenciais: informação, reação; necessária sempre a primeira, eventual a segunda (mas necessário que seja possibilitada!)”[3].

Significa dizer que somente haverá efetivo contraditório no processo quando for facultado à parte incriminada pronunciar-se após o emissor das acusações.

Não por outra razão, o Código de Processo Penal determina que as alegações finais serão oferecidas “respectivamente, pela acusação e pela defesa” (art. 403, caput).

No caso de processos em que houve a celebração de colaboração premiada, o réu colaborador ocupa posição sui generis, tendo em vista que formula acusações contra terceiros, em acordo estabelecido diretamente com o Ministério Público.

Quando o delator efetivamente se defende e contesta alegações ministeriais, por exemplo em relação à natureza ou à extensão do prêmio oferecido em troca da colaboração, seus pronunciamentos são eminentemente defensivos, pois projetam-se como resistência às pretensões do órgão acusatório.

Por outro lado – e aqui está o cerne da questão –, quando inculpa terceiros (réus no mesmo processo), as informações prestadas em juízo pelo colaborador equiparam-se ao depoimento de uma testemunha, com carga acusatória[4], o que se pode observar pelas obrigações legais que ele se sujeita, como dizer a verdade e renunciar ao seu direito de silêncio (art. 4o, § 14, da Lei no 12.850 c.c. arts. 203 e 206 do Código de Processo Penal).

É, portanto, absolutamente temerário que o réu delator e o réu delatado manifestem-se ao mesmo tempo no processo. De que forma haverá efetivo contraditório e estará assegurada a ampla defesa ao delatado se ele não tiver a oportunidade de se manifestar após a parte que, embora também integre o polo passivo do processo, atua como braço da acusação e lhe imputa a prática de crimes?

Registre-se que a ilegalidade de atribuir-se prazo simultâneo para apresentar memoriais escritos não seria sanada caso, na instrução, o interrogatório do delator antecedesse o do delatado. Isso também deve ocorrer, mas não é suficiente.

É na fase de alegações finais – último e único momento processual para debater-se em toda sua extensão fática e jurídica a acusação que pesa contra o acusado antes da sentença –, que o réu, por meio de defesa técnica, terá a oportunidade e o trabalho de deduzir e valorar as provas colhidas na instrução probatória, bem como, se for o caso, rebatê-las – daí decorre a previsão legal do artigo 403, caput, do Código de Processo Penal.

Além disso, tendo em vista o exíguo prazo legal de 5 dias para apresentação de memoriais (art. 403, § 3o, do Código de Processo Penal), não haveria qualquer prejuízo ou risco ao andamento da instrução processual no caso de ser concedido prazo sucessivo a delator e delatado[5].

Assim, em um processo penal que se pretende democrático, deve sempre ser ao menos possibilitado ao incriminado que se manifeste, seja pessoalmente ou por meio de defesa técnica, após as acusações, venham de onde vierem (Ministério Público ou Querelante, Assistente da acusação e corréus colaboradores).

Evidentemente que a celeuma não se resolve com esse precedente. Caberá também ao Supremo Tribunal Federal modular os efeitos desse entendimento[6] e eventualmente distingui-lo de casos concretos futuros com outras particularidades. Questões sempre presentes, como a eventual necessidade de se demonstrar o prejuízo para o reconhecimento da nulidade, entre outras, certamente deverão ser enfrentadas.

Deve-se anotar, finalmente, que não há, como muitos vociferam, golpe ou atentado à Operação Lava-Jato. Caso fosse outra a solução adotada pela Suprema Corte, as garantias constitucionais ao devido processo legal é que seriam golpeadas de morte.

Sérgio Lopes Guimarães de Carvalho Bessa, Advogado criminal e associado de Castelo Branco Advogados Associados.

[1] Disponível em <http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=421829>. Acesso em 28.08.19.

[2] No mesmo sentido o Código de Processo Penal dispõe que “a lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito” (art. 3o).

[3] LA CHINA, Sergio. L’esecuzione forzata e le dispozioni generali del codice di procedura civile. Milano: Giuffrè, 1970.

[4] Evidentemente que somente produzirão efeitos jurídicos, em especial para condenar o corréu delatado, caso sejam corroboradas por elementos de prova trazidos pelo colaborador, conforme exigido por lei (art. 4o, § 16, da Lei no 12.850/13).

[5] Destaque-se que essa sequência de manifestações não traria complicações nem mesmo no caso de ações penais originárias dos Tribunais, no bojo das quais o prazo para oferecer alegações finais é de 15 dias, dada a pequena diferença de tempo para o ato nesses procedimentos e nos processos criminais comuns (art. 11, caput, da Lei no 8.038/90).

[6] O Ministro Edson Fachin, relator do habeas corpus, decidiu encaminhar a questão ao Plenário do Tribunal (disponível em <https://www.conjur.com.br/2019-ago-28/fachin-manda-plenario-hc-questiona-ordem-alegacoes-finais>. Acesso em 28.08.19).