Artigo publicado no jornal Valor Econômico, Caderno Legislação & Tributos, p. E-2, de 26.11.09

Autores: Fernando Castelo Branco e Fernanda de Almeida Carneiro

Segundo dados da Secretaria de Direito Econômico (SDE), em 2008, o número de processos administrativos e averiguações preliminares sobre formação de cartéis no Brasil foi 50% superior ao ano de 2007. Buscando maior rigor na repressão aos crimes contra a ordem econômica, está atualmente em discussão no Senado o Projeto de Lei da Câmara nº 06, de 2009, que reestrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, unificando o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), a Secretaria de Direito Econômico (SDE) e a Secretaria de Acompanhamento Econômico (SAE), em um único órgão, denominado “Novo Cade”. Se aprovado, o projeto de lei trará também mudanças com relação à apuração dos crimes de cartel.

Algumas, de questionável eficácia, como, por exemplo, a extensão dos efeitos decorrentes do famigerado acordo de leniência, atualmente restrito aos crimes contra a ordem econômica, para as hipóteses de cartéis de licitações e crimes correlatos.

Outras, de maior relevância, como a fixação definitiva da competência jurisdicional para apuração dos crimes contra a ordem econômica e a sensível alteração das sanções penais a eles cominadas. São sobre esses dois aspectos que teceremos algumas considerações.

No cenário jurídico atual, não há dispositivo legal expresso fixando a competência para processamento e julgamento dos crimes contra a ordem econômica – previstos na Lei nº 8.137, de 1990 -, dentre os quais se insere a prática de cartel.

Assim, via de regra, a competência é da Justiça estadual. Excepcionalmente, quando o crime for cometido em detrimento de bens, serviços, ou interesses da União (artigo 109, IV da Constituição Federal), a competência passa a ser da Justiça Federal.

A questão não é pacífica, mas o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já estabeleceu que há interesse da União quando, “pela magnitude da atuação do grupo econômico, pelo tipo de atividade desenvolvida ou pela natureza do produto, o ilícito tenha propensão para atingir vários Estados, prejudicar setor econômico estratégico para a economia nacional, ou o fornecimento de serviços essenciais” .

A doutrina também adotou o critério da suprarregionalidade, firmando entendimento de que o delito deve ser julgado pela Justiça Federal “caso a atividade do empresário se espalhe por mais de um Estado-membro”, quando passaria a ser de interesse da União, “preservar a regularidade da economia, que certamente envolverá todo o país”.

O projeto de lei acaba com essa celeuma, estabelecendo a competência da Justiça Federal para processar e julgar qualquer crime de cartel. Assim, busca evitar que os atuais conflitos de competência, levados à última instância do Judiciário, prolonguem por anos o julgamento das lides penais.
Outra mudança significativa diz respeito às sanções penais.

Conforme estabelece o artigo 4º da Lei nº 8.137, de 1990, a pena prevista para o crime de cartel é alternativa: “reclusão de dois a cinco anos, ou multa”. Portanto, não se enquadraria, a princípio, no rol dos crimes de menor potencial ofensivo – aqueles cuja pena máxima privativa de liberdade não ultrapasse dois anos, conforme estabelece a Lei nº 9.099, de 1995.

No entanto, acertadamente, a jurisprudência vem reconhecendo ser possível a concessão da suspensão condicional do processo quando prevista aplicação alternativa da pena de multa, ainda que cominada a delitos cuja pena privativa de liberdade seja superior a dois anos.

A justificativa é que a mera cominação de pena alternativa de multa indicaria a pouca gravidade da infração penal, demonstrando que a intenção do legislador seria punir o infrator com pena privativa de liberdade apenas em último caso.

Assim, muito embora a pena privativa de liberdade cominada para o crime de cartel seja de dois a cinco anos – ultrapassando o limite estabelecido para configuração de crimes de menor potencial ofensivo -, a previsão da pena alternativa de multa vem sendo utilizada para beneficiar os infratores com a possibilidade de transação penal, suspensão condicional do processo, cumprimento de penas alternativas, dentre outros benefícios.

Como reflexo desse entendimento jurisprudencial, o Ministério Público habituou-se, perniciosamente, ao oferecer a inicial acusatória, a capitular um mesmo e único fato como pluralidade delituosa, denunciando a suposta prática de cartel em concurso material com o crime de formação de quadrilha ou bando.

É patente a infringência à regra do “non bis in idem”, já que, tanto no crime de cartel, quanto no de quadrilha ou bando, há a reunião de pessoas com objetivos criminosos.

A razão da estratégia ministerial, para a indevida superposição de crimes, parece evidente: evitar que os denunciados pela prática de cartel se favoreçam dos benefícios concedidos para os crimes de menor potencial ofensivo.

O projeto de lei busca contornar essa questão retirando a alternatividade das penas e adotando sua aplicação cumulativa. Apesar de, em primeira análise, não parecer uma mudança substancial, essa alteração, repita-se, inviabilizaria a concessão dos benefícios acima expostos.

Com a singela mudança proposta pelo PL, sem a necessidade de se aumentar as penas já existentes, o crime de cartel passará a ter punições inquestionavelmente mais severas, compatíveis com a sua potencialidade lesiva e com a relevância do bem juridicamente tutelado. Afinal, “não faz sentido que o sujeito que participou de um cartel termine o processo penal dando cestas básicas para a igreja Nossa Senhora do Ó”, conforme ironizou o presidente do Cade, Arthur Badin.

As medidas propostas, mesmo não solucionando todos os problemas presentes na legislação em vigor, e decorrentes do clamor social, são um passo adiante na ampliação à repressão ao crime de cartel, universalmente reconhecido como a infração mais nociva à livre concorrência.
Fernando Castelo Branco e Fernanda de Almeida Carneiro são, respectivamente, advogado criminal, professor de direito processual Penal da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, e do Programa de Educação Continuada e Especialização em Direito Gvlaw da Fundação Getúlio Vargas; advogada criminal, pós- graduada em administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas.